Artigo de Opinião

Quando Malraux deu à Cultura estatuto ministerial

A França comemora o cinquentenário da criação do seu Ministério da Cultura, iniciativa política que viria a marcar profundamente o modo como a Europa passou a encarar a gestão da vida cultural até à actualidade. Tal como aconteceu em áreas como a dos Direitos do Homem e dos Direitos de Autor, na sequência do triunfo da Revolução Francesa, a França foi também pioneira quando chegou o momento de conferir à cultura importância suficiente para um ministério destinado a gerir os seus destinos.

Isso não aconteceu por acaso. A iniciativa política partiu de um dos maiores nomes da cultura mundial no século XX. Refiro-me ao grande escritor e resistente antifascista, primeiro na Guerra Civil de Espanha e depois nos “maquis” de França, André Malraux. Homem da confiança pessoal e política do general De Gaulle, o autor de “A Condição Humana” propôs-lhe a criação desse ministério, que o general não hesitou em integrar na estrutura orgânica do seu governo. Ao fazê-lo, mudou a história da relação do Estado com a cultura nas décadas seguintes, em França e no resto do mundo, constituindo-se como uma referência que mais ninguém ousou ignorar. De Gaulle era um político conservador, mas não hesitou em reconhecer a importância da cultura no quadro da intervenção política do seu governo.

Legitimado por essa vontade, André Malraux, um notável intelectual e homem de acção, lançou a rede das “Casas de Cultura” que passaram a levar à população de toda a França o teatro, a literatura, o cinema, as artes plásticas e também a dinâmica de formação de animadores culturais. Tratou-se de um passo de dimensão histórica que mudou muita coisa na vida cultural das democracias mais estáveis e avançadas. Portugal, em plena ditadura salazarista, encontrava-se ainda a anos-luz desta empolgante realidade.

Todos os ministros que sucederam a Malraux, fossem eles de esquerda ou de direita, nunca mais deixaram de ficar responsabilizados pela herança deste legado único, que permitiu colocar a defesa do património edificado ao nível do incentivo às vanguardas artísticas e do fomento da leitura. Quando Jack Lang fez o elogio nacional de André Malraux, por ocasião da trasladação dos seus restos mortais para o Panteão Nacional, pôr em destaque a importância que a cultura sempre teve e continua a ter na vida da França e dos franceses.

Por isso, Paris acolhe as figuras mais destacadas da vida cultural mundial, seja ao nível da decisão política e diplomática, seja ao nível da criação, para celebrar esta efeméride e homenagear quem teve visão estratégica e perspectiva de futuro bastantes para criar, no momento certo, um Ministério da Cultura.

Deste modo, a cultura deixou de ser um assunto da direita ou da esquerda para se transformar numa grande causa nacional geradora de perduráveis consensos.

É certo que estamos a falar de uma realidade muito diferente da portuguesa, tanto por razões históricas como políticas ou sociais, mas uma afirmação pode ser feita sem que se corra o risco de faltar à verdade: sempre que um governo ou um executivo municipal decidem investir de forma consistente e sustentável na cultura assiste-se ao progresso da vida comunitária, ao seu enriquecimento material e espiritual e ao reforço da própria coesão social. Por isso, penso que nestes dias todos devemos curvarnos ante a memória de André Malraux e o seu histórico legado. Todos lhe devemos esse gesto de respeito e admiração.


José Jorge Letria

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