Entrevista/Sintra


Misericórdia de Sintra vai criar

Unidade de Cuidados Continuados

A Santa Casa da Misericórdia de Sintra encetou em 2007, após a tomada de posse de uma nova Mesa Administrativa e de um novo provedor – João Lacerda Tavares –, uma política de saneamento financeiro da instituição, que obrigou ao extinguir de algumas valências sociais existentes e à venda de algum património, para ajudar a saldar as grandes dívidas com que a instituição se debatia e ainda se debate. Para substituir a projectada recuperação do antigo hospital, a qual não vai acontecer, a Misericórdia vai criar a primeira Unidade de Cuidados Continuados em Sintra, cujo protocolo para a sua concretização foi assinado no dia 8 de Outubro passado. Um equipamento para apoio sobretudo aos idosos, cuja obra está orçamentada em mais de 10 milhões de euros.

Para conhecermos toda a dimensão da reestruturação introduzida na Santa Casa da Misericórdia de Sintra (SCMS) e os seus projectos para poder continuar a servir a população, o Jornal de Sintra conversou com o provedor João Lacerda Tavares, a quem colocou diversas perguntas, começando pela seguinte:

– Os objectivos que se propôs quando assumiu o cargo de provedor foram conseguidos?
– O objectivo que está sempre na génese e na matriz da Misericórdia é apenas um, servir a comunidade, e isso pode consubstanciar-se em várias áreas, para escolha das principais fomos muito previdentes e disciplinados. A Misericórdia teve um crescimento muito elevado, que lhe provocou uma desarticulação e pouca sustentabilidade financeira a partir de 1999/2000.

Em 2007, quando assumi estas funções, foi desde logo com a percepção clara das dificuldades vividas pela instituição e do enorme peso que tinham as questões financeiras no seu desenvolvimento. Em virtude disso, reprogramámos toda a instituição, para lhe dar sustentabilidade financeira, o que provocou uma substancial modificação das áreas a que a Misericórdia devia consagrar-se, tornando primordial a área dos idosos, da infância e da acção social, que aliás já existiam, tendo abandonado outras.

O ano de 2007 foi caracterizado por enormes dificuldades financeiras, tendo de ser extintas algumas valências e reduzido o número de funcionários, o qual ficou reduzido a menos de metade – chegaram a ser mais de 160 –, e abandonámos também o projecto de reconstrução do antigo hospital.


Valor da dívida era superior a 12 milhões de euros


Lacerda Tavares continua:
O ano de 2008 foi consagrado à implantação do novo projecto de gestão, e no ano de 2009 foi atingida a sustentabilidade operacional da Misericórdia, o que significa que as suas receitas são, presentemente, suficientes para cobrir as despesas correntes, o que anteriormente estava muito longe de acontecer, já que a Misericórdia vivia à base de contracção de empréstimos à banca e da venda de algum património. Mas apesar de termos atingido a sustentabilidade financeira corrente, a instituição tem ainda um défice resultante das responsabilidades com um conjunto de empréstimos contraídos à banca e a muitos fornecedores, o que faz com que a instituição presentemente tenha reservada uma parte muito substancial do seu orçamento para pagamento desses compromissos, o que todavia ainda não é suficiente. Diminuímos muito o valor da dívida, que é actualmente um terço do que era em 2007, quando era superior a 12 milhões de euros, e hoje é sensivelmente na ordem dos 4 milhões e meio de euros, a que se somam os juros, pelo que a Misericórdia necessita de uma enorme ajuda da comunidade e das entidades públicas, entre as quais a Câmara de Sintra e a Segurança Social, para conseguir ultrapassar esta situação, que obriga a Misericórdia a pagar, para amortização da dívida existente, entre 30 a 40 mil euros por mês.


30 a 40 mil euros mensais para amortizar a dívida


– A Misericórdia deixou então de ser a instituição que sempre foi, apoiando várias valências sociais e possuindo até um hospital?
– Depois destas reformas, e por exigência das mesmas, a SCMS ficou circunscrita a três áreas primordiais, que são a infância, os idosos e a acção social. Nesta última área, e nesta época de crise, até centrou mais a sua actividade no apoio às famílias necessitadas, apoiando mais de 800, prestando-lhes auxílio semanal, e até criámos uma valência de apoio a pessoas que, por circunstâncias que não exigimos conhecer, necessitam de tomar um banho, mudar de roupa, tomar uma refeição, e por vezes até dormir, o que lhes é proporcionado aqui nas actuais instalações, onde criámos condições para o efeito.



“Construção do equipamento está orçamentada em mais de 10 milhões de euros”


– Também a antiga sede da instituição, na Rua da Pendoa, mudou para estas actuais instalações.
– É verdade, e isso aconteceu por várias razões: situava-se no Centro Histórico de Sintra, eram muito diminutas para as necessidades que lhes eram exigidas, e por outro lado o edifício necessitava de obras; mas esta mudança esteve ligada também ao projecto de reestruturação financeira, o qual, para diminuirmos o valor da dívida, teve de passar pela venda de alguns imóveis, entre os quais o da sede, na Rua da Pendoa.

– A Câmara tem apoiado a Misericórdia na resolução deste problema?
– A Câmara tem proporcionado – no âmbito do reconhecimento da importância da SCMS em termos tradicionais, e sobretudo da sua história – um conjunto de apoios muito significativos, a nível institucional, de preocupação e de sensibilidade, mas evidentemente também a nível financeiro, o que aconteceu em 2008 e tenho esperança que se repita em 2009, apoio que tem sido para a Santa Casa absolutamente fundamental. E neste sentido a Câmara tem sido um excelente parceiro, bem como o Centro Regional de Segurança Social, aqui não tanto financeiramente mas em termos de compreensão do enorme processo de reestruturação por que a Misericórdia está a passar. Quero frisar que ninguém combate uma dificuldade financeira de uma instituição sem quebrar com o modelo instituído e sem realizar roturas muito fortes, pelo que tivemos de realizar várias, em termos de direcção, de modelo, de respostas para os problemas existentes, o que provocou que a Misericórdia actual nada tenha a ver com a que existia antes de 2007. Sem estar, com esta afirmação, a subestimar todo o trabalho que foi realizado ao longo dos anos por homens bons e com grande empenho, mas também por considerar que a Irmandade é um conjunto de relações que se estabelecem com quem dirige a Misericórdia em determinada altura e quem a dirige a seguir, e jamais me cabe a mim ou a quem me suceder fazer uma condenação sobre um trabalho que é sempre um trabalho louvável para a comunidade. Realço esse trabalho, independentemente de eu ter tido discordâncias sobre a forma como a Misericórdia estava a ser dirigida e ter mudado essa forma de gestão.

– E sobre estas novas instalações onde a Misericórdia está instalada, o que se lhe oferece dizer?
– Admito que estas instalações não têm o historial da anterior sede, que no entanto era um edifício acanhado, mas em termos operacionais estas são muito mais funcionais, e hoje a Misericórdia está muito mais bem instalada, e continuamos a honrar e recordar a sua história, representada nas imagens que aqui estão patentes e que antes estavam no antigo edifício.

– O grande sonho da população do concelho, de ver reaberto o antigo hospital, não vai mesmo passar de um sonho?
– A reabertura do antigo hospital foi sobretudo um sonho da instituição, e grande parte das obras naquele edifício até foram realizadas para esse efeito, mas nunca foi elaborado um plano de gestão e equacionado todo o mercado para se saber se a abertura do hospital iria resultar na aquisição de dividendos para a própria instituição, para além dos benefícios proporcionados à comunidade, mas a gestão de um hospital como este, de natureza particular, e a sua sustentabilidade, não se fazem sem que exista um plano de negócio, e a actual Mesa da Misericórdia fez uma avaliação da situação e chegou à conclusão de que este projecto era completamente inviável financeiramente. Era um equipamento de reduzidas dimensões, no Centro Histórico, e sobretudo por não estar assegurado um conjunto de protocolos, para além dos mais de dois milhões de euros que a Misericórdia ali deixou perdidos, gastos em obras no edifício. Pelo que a viabilidade do hospital era na verdade um sonho, que não foi possível materializar. Mas espero agora, com a celebração do protocolo com este parceiro financeiro, e com o grande acolhimento da Câmara, a SCMS construa um equipamento, também na área da saúde, embora não um hospital, e que é também uma grande necessidade no concelho, o qual é constituído por um lar, uma unidade de cuidados continuados e uma clínica ambulatória. Estes três equipamentos vão ser construídos em simultâneo, num terreno existente na Rua das Murtas, em Sintra, com a área de oito mil metros quadrados, e constituem, mais do que um sonho, o grande desafio para a Misericórdia, que tentará, em 2013, ter concretizado, e no qual ficarão instalados uma unidade de cuidados continuados, uma pequena unidade de lar, uma unidade de clínica ambulatória e a própria sede da Misericórdia. A unidade de cuidados continuados possuirá 120 camas, algumas destinadas à convalescença dos utilizadores após saída do hospital e que não podem de imediato ficar sozinhos em casa; outras para internamentos mais demorados, mas sempre visando a recuperação do doente e o seu regresso à residência; e outros para internamentos de média/longa duração e alguns cuidados paliativos, sendo que este equipamento, e se tudo, como eu espero, se concretizar, exige um investimento calculado em mais de 10 milhões de euros.

– É voz corrente que o edifício do antigo hospital já não pertence à Misericórdia...
– A Misericórdia tinha uma hipoteca muito elevada sobre esse imóvel, e como a instituição não tinha possibilidades de pagar essa dívida o banco procedeu à execução, em termos jurídicos, e a Misericórdia concordou em entregar o imóvel por conta da dívida. Mas temos esperança de que um dia possa ocorrer uma nova situação, mas com grande pena nossa o edifício já não pertence à instituição.

– O Ministério da Saúde não auxilia a Misericórdia na resolução de todos estes problemas?
– As instituições como a Santa Casa da Misericórdia fazem parte das IPSS (Instituições Particulares de Solidariedade Social) e portanto a Santa Casa tem com a Segurança Social protocolos como tal, em que esta ajuda ao financiamento das actividades da Santa Casa, e estamos satisfeitos com essa interligação. Do Ministério da Saúde não recebemos actualmente qualquer apoio, mas quando possuirmos uma valência relativa à saúde certamente que o Ministério nos apoiará.


"Falta de um hospital em Sintra é lacuna enorme e muito lamentável"


– O que pensa da não existência de um hospital no concelho de Sintra?
– Penso que é uma lacuna enorme e muito lamentável que Sintra, o segundo concelho do país, em termos populacionais, não possua um hospital. Esse equipamento faz uma enorme falta, porque a sua numerosa população dele necessita, mas um hospital dimensionado à escala de um hospital público. Os concelhos limítrofes têm dois bons equipamentos nesta área, o mais recente será o de Cascais, mas sendo o hospital em Sintra uma necessidade, há que perguntar se a sua construção faz parte das prioridades do Governo, seja ele qual for, o que até agora não foi.



Lacerda Tavares: “Pretendemos que a Misericórdia continue a ser a instituição de referência e de confiança que é há já 464 anos”


– Mas é um desafio para a Câmara cumprir, e que há muito é prometido por diferentes executivos...
– A Câmara não tem qualquer competência a nível de construção de equipamentos de saúde, e eu sou testemunha, até porque fui vereador em dois mandatos, do enorme empenho do professor Fernando Seara quanto à exigência desse equipamento para o concelho, exigência que não foi ouvida por parte dos Governos da Nação.


Futuro equipamento importará em 10 milhões de euros
e estará construído em 2013


– O Protocolo de Intenção de Colaboração para a criação da primeira Unidade de Cuidados Continuados em Sintra, celebrado no dia 8 de Outubro, de que consta?
– É um protocolo com a Square Asset Management, que é um fundo imobiliário da Caixa de Crédito Agrícola nacional, a qual, confiando na instituição SCMS, e tendo confiança na nossa gestão, está disponível para construir, a expensas suas, todo o equipamento atrás referido, fazendo posteriormente a entrega da sua gestão à Santa Casa, mediante o pagamento de uma renda àquela empresa, por parte da nossa instituição. Mas acreditamos que, e perante os planos e acordos que estamos a elaborar, todo este processo, além de proporcionar um grande apoio à comunidade, proporcionará também dividendos à Misericórdia, os quais irão ajudar a solver o passivo existente. Mas no entanto nunca avançaremos definitivamente para este projecto se não tivermos a certeza de que ele possa ser rentável, porque a Misericórdia já teve uma experiência terrível, que poderia ter determinado o seu encerramento, e jamais iniciaremos um novo projecto sem termos a certeza de que ele possa ser rentabilizado e nem a Misericórdia aguentaria um novo choque como o que já sofreu.

– Se o projecto for mesmo avante quando terão início as obras?
– O calendário estabelecido é até ao final do ano resolver as questões institucionais; o primeiro semestre de 2010 será para elaboração do projecto de arquitectura; depois será necessária a aprovação do mesmo pelo Departamento de Urbanismo da Câmara, o que contamos que aconteça no espaço de doze meses, pelo que prevemos que a construção possa iniciar-se em meados de 2011 para ficar concluída em 2013.


"Pretendemos que a Misericórdia continue a ser
a instituição de referência que é há já 464 anos"



– Mas além do já enunciado, o que é que, futuramente, a Misericórdia vai ser mais?

– Pretendemos sobretudo que a Misericórdia continue a ser a instituição de referência e de confiança que é há já 464 anos, ao serviço da comunidade sintrense, dando acolhimento aos enfermos e necessitados. E no final do meu mandato, que terminou em finais de Novembro, farei a avaliação do meu trabalho, a Irmandade fará também a avaliação do mandato que nos deu enquanto Mesa Administrativa, e com todos os problemas e dificuldades por que passámos, há uma coisa que seguramente ninguém me tira, que é a determinação de levar até ao fim um projecto que tentei executar, e a minha determinação é muito superior a qualquer questão pessoal. E portanto, todos aqueles que não conseguiram levar este projecto, em conjunto comigo, até ao fim, porque houve várias desistências, fazem com que eu sinta, mesmo lamentando essas desistências, um reforço da minha vontade de levar a Santa Casa a bom termo, e levá-la a bom termo é que possa honrar os seus compromissos, resolver os seus problemas financeiros, ser uma pessoa de bem e continuar no seu caminho de apoio à comunidade, sem que as medidas económicas que foram tomadas afectem a qualidade das suas respostas sociais, mas sempre tendo em conta que a instituição é também uma empresa, e como tal deve ser gerida.

– O senhor referiu a sua entrega à Misericórdia nestes anos em que esteve à frente da instituição. Vai continuar a desempenhar o cargo se para tal for convidado?
– Fiz a minha reflexão sobre essa possibilidade, porque este encargo obrigou-me a três anos de uma enorme entrega, prejudicando-me até profissionalmente, trazendo para a minha vida uma enorme preocupação, como nunca tinha tido antes, já que senti toda a Santa Casa às minhas costas, mas de qualquer modo pôr-me-ei à disposição dos Irmãos, numa assembleia geral própria, os quais farão a devida avaliação do meu trabalho, que é muito difícil de compatibilizar com as outras actividades em que estou envolvido. Porque este tipo de voluntariado, além de muito difícil, é de uma enorme exigência. Mas confesso que gosto muito da Misericórdia, já tive aborrecimentos com algumas pessoas por causa da instituição, mas se no trabalho que realizei não tive o condão de já ter atingido todos os objectivos, julgo porém poder afirmar que esta Mesa Administrativa, e através de mim, conseguiu salvar a Misericórdia.


Texto e fotos: António Faias