Sobre a violência doméstica

A divulgação dos números das queixas de violência doméstica, a sinalização das numerosas situações e a multiplicação de vítimas de homicídio que a ocorrência no dia 9 do corrente em São Marcos é o mais recente exemplo no concelho de Sintra dão-nos a conhecer uma situação de horror, de vidas violadas, de dignidade humana recusada, de direitos humanos negados.

Esta situação, por ser intolerável, impõe, para lá de uma sentida manifestação de pesar e solidariedade e, sobretudo, de uma veemente condenação social e cívica, uma reflexão e um estudo sistemático que nos ajude a compreender a sua persistência e a potenciar uma busca permanente de soluções que a combatam e erradiquem de modo definitivo.

Sabe-se que esta violência é global e sistemática, e está enraizada nas diferenças de poder e de desigualdade estrutural entre mulheres e homens; que está para além de especificidades históricas, sociais, religiosas. Sabe-se que é universal e permanente. Apesar de também afectar, embora em muito menor número, os homens, sabe-se que atinge as mulheres de forma desproporcional, só porque são mulheres, e vai do sofrimento físico e mental, até outras formas de coacção ou inibição da liberdade, como a privação económica ou o isolamento – geradoras de um grande sofrimento.

Contudo, e contrariando as expectativas dos impactos do aumento dos níveis educacionais, da crescente autonomia das mulheres face a uma generalizada participação no mercado de trabalho, das campanhas de informação, do alargamento de redes de apoio, verifica-se um aumento real da violência exercida.

De facto,
• apesar de uma progressiva e significativa melhoria das condições gerais de vida, não podemos deixar de registar que vulnerabilidades, assimetrias e exclusões persistentes são responsáveis por uma violência que não cede, antes se acentua;

• apesar de uma significativa elevação do nível educativo que deveria pressupor maior civilidade nas relações interpessoais, as manifestações de violência aumentam e apresentam novas formas;

• apesar de uma elevada participação das mulheres no mundo do trabalho, que deveria pressupor uma maior autonomia e independência, os seus testemunhos tardam a generalizar-se e a ser reconhecidos como credíveis, deixando muitas mulheres prisioneiras de preconceitos sociais, próprios e/ou alheios, e isoladas no seu mundo de violência sofrida;

• apesar de sucessivas campanhas de informação, de um maior esclarecimento das vítimas, de uma melhor preparação das polícias, de uma significativa e compreensiva evolução na feitura de leis que definem o crime, prevêem a protecção da vítima e punem o agressor;

a interpretação do crime, a análise da vítima continuam condicionados a preconceitos e estereotipias.

A violência doméstica é manifestação de uma barbárie que persiste e de um continuado atentado civilizacional à dignidade da pessoa bem como à integridade física e moral das mulheres.

O seu combate exige a intervenção conjunta de todos os decisores e da população em geral, pois não bastam os desenvolvimentos positivos ao nível legal, político e até de algumas práticas. Assim, impõe-se um reforçado empenho político e jurídico, de maneira a identificar formas e recursos que previnam e combatam de modo sustentado esta violência.

Torna-se indispensável o envolvimento de toda a comunidade, quer na identificação das situações e de uma rápida e eficaz ajuda, quer na sua denúncia imediata, quer no comprometimento activo na sua eliminação, quer, ainda e sobretudo, na promoção de um ambiente fortemente dissuasor de tais situações. Muitas destas violências acontecem porque vivemos numa sociedade ainda demasiado permissiva neste campo.

Nos casos especiais de homicídio, deve verificar-se se houve falhas na protecção das vítimas e desenvolver medidas para prevenir crimes futuros.

A sociedade contemporânea vive sob a égide da indiferença (que é, ela própria, manifestação de uma profunda violência) e os seus membros sofrem de uma perda progressiva de competências de relação interpessoal. Neste tempo de preparação do Natal, a CNJP apela a todos, entidades públicas e organizações, mas também a cada um e cada uma e, em particular, às comunidades cristãs, no sentido de aprofundarem a consciência da urgência da acção que previna e cuide, mas que também passe pela alteração dos comportamentos individuais e comunitários.


Fonte: A Comissão Nacional Justiça e Paz

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