Religião

Uma encíclica em tempo de criseJustificar completamente

Sem preconceitos, porque é assim que deve ser abordada, a encíclica social de Bento XVI é um compêndio, um guia, para compreender a crise e o mundo.

Naturalmente, todo o texto respira e transpira uma visão transcendental, o pensamento católico sobre a vida, o Homem e o mundo. Mas este é um texto que derruba fronteiras. Corajoso, nada conservador, critica governos e gestores de um mercado falido, como nenhum político eleito fez até agora. Rasga, no sentido positivo do termo, uma certa lógica pragmática, sem ética, que domina a economia e a política, motivadora de resignação e imprudência, geradora da crise. Os valores que atravessam a encíclica social de Bento XVI, são os valores da exegese do tempo, propostas de construção de fraternidade, esmagadas por pressupostos com pés de barro que servem de desculpa para adiar opções… radicais.

Apresentada na véspera de mais uma reunião dos “colossos” económicos no G8, A Caridade na Verdade é uma encíclica marcada pela crise, mas que permanecerá actual nas crises e entre as crises do futuro. Na senda de outros documentos importantes que definem a chamada Doutrina Social da Igreja – como a Rerum Novarum de Leão XIII, a Pacem in Terris de João XXIII, os documentos do Concílio Vaticano II, a Populorum Progressio de Paulo VI ou a Centesimus Annus de João Paulo II, cada qual com a marca do seu tempo –, Caritas in Veritate retrata um mundo e um tempo de incertezas, com a certeza de que muita coisa tem de mudar.

Está lá tudo, com uma gramática criteriosa e uma invulgar capacidade de leitura do tempo e dos sinais. Ética e Justiça serão palavras-chave da encíclica, mas não chegam para compreender a(s) direcção(ões) proposta(s).

Mediaticamente faz eco o apelo, que não é inédito – João XXIII já o fizera –, para uma “reforma da ONU” e a criação de uma “Autoridade Política Mundial” reguladora da globalização, reconhecida por todos, “com poder efectivo para garantir a observância da justiça, o respeito dos direitos” e planificar o desenvolvimento, orientada pelos “princípios da subsidiariedade e da solidariedade”. Propostas em jeito de renovadas utopias. Mas o texto é muito mais profundo. Foi elaborado com tempo, amadurecido enquanto se atravessava a crise.

Sob o signo da crise económica, Bento XVI defende também, como dimensão imprescindível, a liberdade religiosa que “não significa indiferentismo religioso”, promotor do afastamento da dimensão transcendental da esfera pública, ou sincretismo que relativiza.

No laicismo, por um lado, ou no fundamentalismo, por outro, “perde-se a possibilidade de um diálogo (…) entre a razão e a fé religiosa”, defende Bento XVI.

A corrupção, o lucro, as deslocações de empresas – “não são lícitas somente para gozar de especiais condições” –, a reavaliação do papel dos Estados, os sistemas de segurança social, a importância das organizações sindicais – embora com novos paradigmas de luta –, a mobilidade laboral, os fluxos migratórios, o “absolutismo tecnológico” que deslumbra, a vida, o ambiente, a agricultura, os recursos naturais, a pobreza, a fome, a liberdade, o desenvolvimento, a comunicação social, a interacção cultural, a interdependência, os dilemas antropológicos… são abordagens aparentemente inconciliáveis numa única reflexão e que ganham, nesta encíclica, a forma de um rendilhado coerente e conciso.

A história já provou que uma crise oferece possibilidades e antecipa mudanças.

Bento XVI fala de confiança, mas não consegue esconder um certo cepticismo, uma dose de desalento com o homem contemporâneo, menos disponível para os valores da religião, da transcendência… da fé, que, no entender do papa, purifica a razão.

“Os custos humanos são sempre custos económicos e as disfunções económicas acarretam sempre custos humanos”, por isso, não haverá fraternidade sem “transparência, honestidade e responsabilidade”.

Tendo o homem como meta, e na sequência da encíclica Deus Caritas est (Deus é Amor), a nova encíclica A Caridade na Verdade reabre o leque de intervenção dos cristãos: “O caminho político da caridade não é menos qualificado e incisivo do que é a caridade que vai directamente ao encontro do próximo”.

Nas primeiras linhas, o papa lembra que “a caridade é a via mestra da doutrina social da Igreja”. Mas a prática também revela que a falta de coerência é a fragilidade maior entre os cristãos, a quem o papa se dirige em primeiro lugar. Bento XVI critica os alicerces do mercado desregrado, o “crescimento de uma classe de gestores” preocupados apenas com o lucro.

Muitos gestores, que se dizem católicos, foram cúmplices ou responsáveis pela crise, aproveitaram-se dela ou das fragilidades do mercado sem regras que a provocou. Devem ter as orelhas a arder.

Artigo do jornalista Joaquim Franco, membro da Comissão Nacional Justiça e Paz

1 comentário:

A.Brandão Guedes disse...

Antes de mais os parabéns pelo Blogue!
Em segundo lugar o salientar a forma sintética e bem escrita deste artigo sobre a recente Enciclica de Bento XVI.São raros os comentários no nosso País sobre o documento, o que, aliás, só confirma a tradição de desinteresse dos portugueses sobre estas manifestações.
A minha opinião sobre o documento de Bento VI ainda está em gestação e não está acabada.
Sob ponto de vista formal considero, porém, este documento muito longo, algo disperso e onde algumas temáticas são várias vezes abordadas.Algumas com profundidade como o caso da ligação do desenvolvimento ao ambiente e outras muito ligeiramente abordadas como o caso do emprego desemprego e a precariedade.Esta, como forma de flexibilidade, é uma das caracteristicas mais perversas da nossa sociedade!Aparentemente facilita a vida das empresas mas está a gerar gerações de trabalhadores que não sabem o que vai ser o dia de amanhã!A flexibilidade a todo o custo está a criar um homem novo num sistema económico que esté em crise...
O Papa tem outras preocupações políticas, algumas de grande importancia, sem dúvida, como a governação mundial e a gestão da globalização.Todavia, o trabalho e o papel deste na vida das pessoas e dos povos continua a ser central.Assim como sindicalismo que é quase ignorado.Ora o sindicalismo continua a ser um movimento social imprescvindível na governação da globalização.
Penso que sob ponto de vista ético e político o Papa veio dizer o que as ONGs (inclusive da Igreja), sindicatos mundiais e instituições da ONU já disseram!Mas é este precisamnete o papel da chamada "doutrina social da Igreja(ou da Hierarquia) como me dizia um militante da Acção Católica e sindicalista.Assumir como património da Igreja alguns aspectos fundamentais do debate social, ético, político e económico.