Crónica TV

O Antigo Testamento segundo Saramago

A semana que passou – e porque eu escrevo sempre com algum atraso – teve um interveniente inesperado. Não foi a iminente constituição do novo governo, como seria de esperar, mas sim José Saramago. Ora Saramago, que muitos consideram não ter estudos académicos (o que é verdade, mas não chega a ser pecado), que outros apontam como comunista (o que é verdade, mas numa democracia é uma opção como qualquer outra) e que grande parte, ainda, acha que não merecia o Nobel da Literatura. Aqui não direi que seja verdade, mas é uma opinião que aceito – embora suspeite, no meu íntimo, que uma bela fracção dos que tal dizem nunca terá lido qualquer dos seus livros. Mas disso, e dos críticos de cinema que não vêem os filmes e dos de música que não ouvem os discos, está o inferno cheio. É uma expressão popular e não me queiram pôr crenças na boca…

Acontece, para este caso, que José Saramago tem opiniões, o que é normal. E, tratando-se de um escritor, faz todo o sentido que venha dizer que a Bíblia é um livro com partes maravilhosamente escritas mas, segundo ele, um livro sem o qual “seríamos outras pessoas – provavelmente melhores. (…) A Bíblia é um manual de maus costumes, um catálogo de crueldade”. Duas coisas: saberá, quem leu a Bíblia, especialmente o Antigo Testamento, que a última afirmação é uma verdade incontestável; e, por outro lado, não parece ter contado para nada o facto de Saramago a ter pronunciado com o mesmo sentido que diria, depois de um filme, qualquer coisa como “o filme é bom, o argumento tem trechos muito bem escritos, mas pareceu-me demasiado e desnecessariamente violento em certas partes”. O Pe. Carreira das Neves, que com Saramago foi entrevistado pela SIC, acha que é verdade: mas que essas passagens não devem ser lidas literalmente, mas como “imagens”. Apesar disso, parece que Saramago não pode ter opiniões – e houve mesmo um deputado europeu, patetinha, que fez um apelo para que o escritor renunciasse à nacionalidade portuguesa. E recordo-me muitas vezes, quando se fala de Saramago e do seu Nobel, daquilo que Graham Greene disse acerca da atribuição desse galardão a François Mauriac: “O Nobel honrar-me-ia a mim, Mauriac honra o Nobel.” E é esta coisa de o Nobel de Saramago nos honrar também a nós, portugueses, que ninguém – ou muito poucos – parece levar em linha de conta. Pelo contrário: em vez disso são mesmo capazes de dizer “Coitado dele! Com aquela idade está completamente patareco…”

Fiquei a saber na segunda-feira que começou a ser administrada a vacina para a gripe H1N1, também conhecida por A e mesmo “suína”. Acontece que desde que se começou a falar na vacina, muitas foram as personalidades que se levantaram contra essa vacina e seus efeitos secundários mas, curiosamente, nenhuma televisão lhes deu voz. Já que ninguém o fez, sugiro a todos os que tenham Internet que vejam o vídeo de uma freira, Teresa Foncades. A freira, que antes de entrar num convento da Catalunha era médica e com uma especialização nos Estados Unidos (o que dará maior confiança a alguns), fala da gripe, dos números, das decisões da Organização Mundial de Saúde e dos efeitos secundários da vacina – bem como de algumas implicações políticas que a rodeiam – ao longo de um pouco mais de 50 minutos. Está ali tudo: inclusivamente, a sua declaração segundo a qual “se eu ainda fosse médica e não freira, estaria impossibilitada de vos dizer tudo isto”. É altamente pedagógica e elucidativa: depois, cada um tirará as suas conclusões. Está disponível em http:// www.vimeo.com/6790193.
Há 10 anos escrevia
«Desculpem lá, mas aquilo [a “Lenda da Garça”] não é uma novela: é um desgosto. E não houve ninguém, em toda a 5 de Outubro, que fosse capaz de ver que aquilo não prestava? Está tudo a brincar comigo – e isso eu não gramo. Mais ainda: mudam as direcções de programas e quem vem atrás é tão bom como quem lá estava, que não tem a coragem – física ou política – de pôr cobro àquilo. De dizer, com toda a honestidade, “Sra. D. Carmen Dolores, desculpe lá, o texto não a merece, aqui está o dinheiro que lhe prometeram, faça o favor de ir para casa.” É que convém ter algum respeito pelas pessoas. Sobretudo se elas se chamam Carmen Dolores. E é esta outra espécie de carne para canhão que me desgosta. Muito.»


António Pessoa

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