Sintra





O Imaginário Romântico da Pena

Ao apresentar este trabalho sobre o Palácio e Parque da Pena, em Sintra, damo-nos conta de que, até ao momento, se tem estudado e interpretado aquele património duma forma fragmentária, dispersa, sem se estabelecer pontos de relação entre si, como se de ilhas isoladas se tratasse. No entanto, aquele magnífico espaço resulta, em grande parte, de uma profunda unidade temática, estilística, visual, paisagística, artística, em suma, cultural, que urge compreender de outra forma e com um conjunto diferenciado de interpretações.


O espaço da Pena insere-se na Serra de Sintra, mas com um cariz tão próprio e específico que importa realçar o todo constituído pelas suas partes que, ao interpenetrarem-se, dão um sentido e um significado inédito ao conjunto.

Para esse sentido contribuiu a sensibilidade e a cultura de um príncipe alemão que, pelas circunstâncias do seu matrimónio, veio a ser consorte de D. Maria II, pai da vasta prole dada à nação, fruto desta união, e posteriormente aclamado como «Rei-Artista ». Na verdade, D. Fernando Saxe-Coburgo Gotha, herdeiro de uma invulgar cultura diversificada, adquirida através de uma educação muito disciplinada e aberta às novidades culturais de uma Europa em mudança, irá juntarlhe uma sensibilidade profunda e um gosto requintadíssimo, formados através dos ideais românticos. Obrigado a compreender a importância da Família Coburgo no novo quadro político pós-napoleónico a que o Congresso de Viena deu forma, percebeu, aos dezanove anos, que deixaria uma vida despreocupada e preenchida, por um país do sul da Europa, economicamente falido, saído duma guerra civil fratricida, indo desposar uma jovem rainha, já viúva aos dezassete anos, que poucos mais atractivos lhe teria para dar, a não ser um reino com um clima meigo, suave, bordejado por um mar que no vaguear das ondas batia palmas sonolentas de tédio.

A descoberta de Sintra e das ruínas conventuais no cimo da serra vizinha, conhecidas nos dias de lua-de-mel aí passados, vão motivá-lo a abraçar um projecto que poderá ser considerado como a obra da sua vida.

É a Portugal que o mecenas deixa a sua obra querida, onde os valores românticos de sublime e genialidade estão bem evidentes. A sua visão do mundo e interpretação da vida, transmitidas através de uma pedagogia da acção cultural (e nunca militar), é um legado de tal forma recheado de valores filosóficos-morais tão ricos que a interpretação da sua actividade deverá ser entendida como uma postura de vanguarda, e, como tal, só uma centúria e meia mais tarde pode ser entendida.

Apresentando genericamente as linhas condutoras deste trabalho, diremos que o primeiro capítulo faz a abordagem ao mundo intelectual e cultural que formou D. Fernando II, do qual este ouviu falar assiduamente, tendo-o vivido duma forma directa e participada, sobretudo, na adolescência, através duma sólida formação. A mentalidade romântica do mecenas foi sensível ao saber filosófico- moral alemão, ligado ao peso de uma literatura que se encontrava na idade de ouro com as obras dos geniais Schiller e Goethe. A ligação do homem a Deus pela fé, mas também pelo sentimento, acolhia uma Natureza que, se era o reflexo da imagem divina, projectava também a emoção e as angústias do homem romântico como indivíduo.

O romantismo vai recorrer à subjectividade na representação do mundo. D. Fernando viveu o movimento do paisagismo dos jardins na Alemanha e é inevitável esta subjectividade, bem representada nos múltiplos trechos que cria no Parque da Pena, onde a presença de um palácio reforça a representação do sujeito apaixonado pelo esprit du lieu. A importância dos jogos de luz e sombra, as rochas num megalitismo sagrado convidando a uma visão mítica do real e a lonjura do horizonte marítimo criam a ementa forte e sugestiva neste ideário.

Nas Rêveries d’un Promeneur Solitaire, de Rosseau, há o convite ao caminhar solitário que a Pena e o seu jardim de segredos vão proporcionar. É, igualmente, neste sentido que a noção de fantástico aparece, na ligação primeira a um maravilhoso a que Schiller vai associar a ideia moderna de «um poeta sentimental».

A novidade do nosso trabalho está em tentar interpretar e dar sentido a todos os elementos decorativos da construção que têm recorrências simbólicas e iconológicas de profundo significado. Se o símbolo está presente e é detectado, há por trás dele uma história, uma narrativa não casual que urge entender.

Outro aspecto em ter em conta diz respeito às influências que o projecto da Pena tem de alguns palácios e castelos alemães que, directa ou indirectamente, fizeram parte das vivências do príncipe. A figura de Schinkel, como arquitecto e autor de alguns projectos ligados à Família Coburgo, como as remodelações do castelo de Ehrenburg e o Schloss Rosenau, tem eco na Pena.

Igualmente, o Castelo de Stolzenfels, nas margens do Reno, visitado pelo Barão von Eschwege na viagem que o mecenas lhe proporcionou, influenciou decisivamente a Pena, sobretudo nas volumetrias do «Palácio Novo». A sua envolvência paisagística teve, também, forte eco nos projectos desenvolvidos na serra de Sintra. Por fim, o palácio de Babelsberg, de Potsdam, e os jardins que Lenné projectou para a sua envolvência repercutiram-se, por certo, na obra fernandina da Pena. De facto, é fascinante compreender a obra de arte nas suas múltiplas vicissitudes. Se a Pena recebe, também, influências de Potsdam, Coburgo e do Reno, é, igualmente, importante sentir o fascínio exercido no magnate russo Musorov que nos visitou em 1882, e, à sua maneira e do seu arquitecto, irá ecoar o nosso palácio-castelo na rua Vozdvijenka da capital moscovita.

Assim se cumprirá a missão da arte, que passa de protótipo a modelos, criando influências riquíssimas a desvendar.

José Manuel Martins Carneiro

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