Truques, manhas e desaires da TVI
Há muito que suspeitava que aquilo que as vozes em off nos dizem nas televisões nem sempre é verdade – e as mais das vezes são mentiras profundas. Basta ver como nos anunciam programas, séries e novelas maravilhosas, que foi assim que encomendaram o sermão ao dono(a) da voz off e, quando caímos no engodo e vamos a ver, são uma desgraça completa. Isto poderia ser assim de um ponto de vista meramente institucional, isto é, cada televisão a gabar o seu peixe (salvo seja) até porque se não forem elas a gabá-lo ninguém o fará. Mas não fica por aí. Tenho, por solidariedade doméstica acompanhado a espaços algumas das novelas da TVI e há meses – literalmente – que todas as noites uma voz me vem dizer para não perder “um dos últimos capítulos de ‘Flor do Mar’”. Tem variantes: pode ser, por exemplo, “está cada vez mais próximo o fim de ‘Flor do Mar’”, como também há o “está prestes a ser descoberto o autor do crime da Dra. Não Sei Quantas (o Não Sei Quantas é meu, claro) na novela ‘Flor do Mar’”. As variedades são infinitas: troca uma palavra aqui, altera outra acolá e o resultado é de centenas ou mesmo milhares de combinações. A verdade verdadinha é que, ao que parece, o fim nunca mais chega; tal como é verdade como nunca mais se sabe quem matou a Dra. Isto é, nem o assassino (ou assassina) é apanhado nem nós temos descanso. E depois querem que acreditamos quando nos dizem que o programa “x” é o suco da barbatana? Ora!
Pela primeira vez em muito tempo, a TVI arrancou em horário nobre com uma ficção portuguesa que não é uma novela nem seu parente, como foi o caso de “Equador”, nem concurso nem reality show. Chama-se “Ele é Ela”, uma série de comédia sobre um mulherengo (Marco d’Almeida) que dá por si transformado em mulher (Benedita Pereira) como vingança de uma conquista casual que desenvolveu uma fórmula científica que permite a mudança de sexo. O mais curioso neste pseudonacionalismo de que a TVI parecia acometida, esta “ficção nacional”, por assim dizer, é na verdade, e à imagem de “Anjo Selvagem” ou de “Floribella”, uma adaptação de um formato latino, no caso a comédia argentina “Lalola”. Quererá isto significar, por parte da TVI, que não há argumentistas portugueses capazes de terem boas ideias para ficção portuguesa que não sejam novelas? Ou porque parece ser mais seguro apostar num formato estrangeiro? A verdade é que as audiências não mentem: e quando as pessoas preferem “Conta-me como Foi” (adaptação de um original espanhol) a “Liberdade 21”, que era um original português e bem feito, parece que a TVI tem toda a legitimidade para fazer o que faz. Mas isso levanta ainda um outro problema: comprar os direitos de uma série e adaptá-la deve sair incomparavelmente mais barato do que encomendar uma ideia e uma série a um autor português. Que o digam os sul-americanos (já não me lembro quais), onde a série “Equador” está em fase final de dobragem.
Com dez meses de emissões, a TVI 24 parece ter desaparecido da grelha e não dou por ninguém a falar dela. É bem capaz de se ter revelado um passo maior do que as pernas para o canal de Queluz, que viu as concorrentes directas, SIC Notícias e RTP-N ganharem um novo fôlego. Nesse élan (caramba, que me saiu bem) da RTP-N conta-se o programa “Conversas de Escritores”, de José Rodrigues dos Santos. Já foram para o ar 11 programas e, alguns, com números espantosos para um país de iletrados e pouco voltado para os livros como o nosso. Se Saramago, o último programa, teve 24 mil espectadores, o que mais espanta é que a conversa com Hubert Reeves – um astrofísico canadiano e divulgador da ciência -, transmitida a 26 de Agosto, tenha registado o melhor resultado, com 45.600 espectadores de audiência média.
Há 10 anos escrevia
«Esta coisa das séries que agora são useira e vezeiramente adaptadas para português, começam geralmente bem, mas acabam por descambar para o evitável. Temos dois exemplos disso na SIC: “Médico de Família”, onde Diogo é cada vez menos médico e cada vez mais homem de família, e “Jornalistas”, onde a profissão que dá o nome à série é muitas vezes utilizada completamente em vão. Julgo que as pessoas que assistem a esta série são capazes de ficar um pouco mal impressionadas com os jornalistas – pelo menos com aqueles que ali vêem – uma vez que estes fazem tudo menos exercer a profissão. As fofocas abundam naquela redacção para além do que seria razoável e aquele corpo redactorial vive com a cama na cabeça. Será que as pessoas que assistem à série julgam que ser jornalista é mesmo aquilo? Claro que sim: pois se passa na televisão!»
António Pessoa
Há muito que suspeitava que aquilo que as vozes em off nos dizem nas televisões nem sempre é verdade – e as mais das vezes são mentiras profundas. Basta ver como nos anunciam programas, séries e novelas maravilhosas, que foi assim que encomendaram o sermão ao dono(a) da voz off e, quando caímos no engodo e vamos a ver, são uma desgraça completa. Isto poderia ser assim de um ponto de vista meramente institucional, isto é, cada televisão a gabar o seu peixe (salvo seja) até porque se não forem elas a gabá-lo ninguém o fará. Mas não fica por aí. Tenho, por solidariedade doméstica acompanhado a espaços algumas das novelas da TVI e há meses – literalmente – que todas as noites uma voz me vem dizer para não perder “um dos últimos capítulos de ‘Flor do Mar’”. Tem variantes: pode ser, por exemplo, “está cada vez mais próximo o fim de ‘Flor do Mar’”, como também há o “está prestes a ser descoberto o autor do crime da Dra. Não Sei Quantas (o Não Sei Quantas é meu, claro) na novela ‘Flor do Mar’”. As variedades são infinitas: troca uma palavra aqui, altera outra acolá e o resultado é de centenas ou mesmo milhares de combinações. A verdade verdadinha é que, ao que parece, o fim nunca mais chega; tal como é verdade como nunca mais se sabe quem matou a Dra. Isto é, nem o assassino (ou assassina) é apanhado nem nós temos descanso. E depois querem que acreditamos quando nos dizem que o programa “x” é o suco da barbatana? Ora!
Pela primeira vez em muito tempo, a TVI arrancou em horário nobre com uma ficção portuguesa que não é uma novela nem seu parente, como foi o caso de “Equador”, nem concurso nem reality show. Chama-se “Ele é Ela”, uma série de comédia sobre um mulherengo (Marco d’Almeida) que dá por si transformado em mulher (Benedita Pereira) como vingança de uma conquista casual que desenvolveu uma fórmula científica que permite a mudança de sexo. O mais curioso neste pseudonacionalismo de que a TVI parecia acometida, esta “ficção nacional”, por assim dizer, é na verdade, e à imagem de “Anjo Selvagem” ou de “Floribella”, uma adaptação de um formato latino, no caso a comédia argentina “Lalola”. Quererá isto significar, por parte da TVI, que não há argumentistas portugueses capazes de terem boas ideias para ficção portuguesa que não sejam novelas? Ou porque parece ser mais seguro apostar num formato estrangeiro? A verdade é que as audiências não mentem: e quando as pessoas preferem “Conta-me como Foi” (adaptação de um original espanhol) a “Liberdade 21”, que era um original português e bem feito, parece que a TVI tem toda a legitimidade para fazer o que faz. Mas isso levanta ainda um outro problema: comprar os direitos de uma série e adaptá-la deve sair incomparavelmente mais barato do que encomendar uma ideia e uma série a um autor português. Que o digam os sul-americanos (já não me lembro quais), onde a série “Equador” está em fase final de dobragem.
Com dez meses de emissões, a TVI 24 parece ter desaparecido da grelha e não dou por ninguém a falar dela. É bem capaz de se ter revelado um passo maior do que as pernas para o canal de Queluz, que viu as concorrentes directas, SIC Notícias e RTP-N ganharem um novo fôlego. Nesse élan (caramba, que me saiu bem) da RTP-N conta-se o programa “Conversas de Escritores”, de José Rodrigues dos Santos. Já foram para o ar 11 programas e, alguns, com números espantosos para um país de iletrados e pouco voltado para os livros como o nosso. Se Saramago, o último programa, teve 24 mil espectadores, o que mais espanta é que a conversa com Hubert Reeves – um astrofísico canadiano e divulgador da ciência -, transmitida a 26 de Agosto, tenha registado o melhor resultado, com 45.600 espectadores de audiência média.
Há 10 anos escrevia
«Esta coisa das séries que agora são useira e vezeiramente adaptadas para português, começam geralmente bem, mas acabam por descambar para o evitável. Temos dois exemplos disso na SIC: “Médico de Família”, onde Diogo é cada vez menos médico e cada vez mais homem de família, e “Jornalistas”, onde a profissão que dá o nome à série é muitas vezes utilizada completamente em vão. Julgo que as pessoas que assistem a esta série são capazes de ficar um pouco mal impressionadas com os jornalistas – pelo menos com aqueles que ali vêem – uma vez que estes fazem tudo menos exercer a profissão. As fofocas abundam naquela redacção para além do que seria razoável e aquele corpo redactorial vive com a cama na cabeça. Será que as pessoas que assistem à série julgam que ser jornalista é mesmo aquilo? Claro que sim: pois se passa na televisão!»
António Pessoa
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