(…), O romance Caim, (...) insere-se em perfeição extraliterária de Saramago, especificamente na desconstrução dos mitos fundadores da religião judaico-cristã (...) Em Caim, desmontando as grandes categorias teológicas em que assenta a visão bíblica do mundo, (...) são duramente criticadas tanto a pura espiritualidade de Deus quanto a omnipotência, a misericórdia e a transcendência divinas”. Miguel Real, in J.L. 3/11/09
O lançamento do livro Caim, de José de Sousa Saramago, realizou-se a 30 de Outubro do p.p. no Grande Auditório da Culturgest – Lisboa. No acto de lançamento que contou com a presença do Editor da Caminho José Zeferino.
Eis Saramago na sua própria voz:
– Não procurem hematomas, tenho a pele bastante dura, tenho uma carapaça como a tartaruga. A polémica foi promovida pela igreja católica ou [e] jornalistas de mão, movidos por interesses pessoais.
(...) Não pedia tanto, não pedia nada. O que me interessava é que os meus leitores tenham comprado já 70.000(!). Porquê Caim e não tratar de assuntos actuais?
(...)Ratzinger [papa Bento XVI] quer restituir o império romano – disse alguém, e o Autor confirmou, através de sinais que estão a acontecer. (...) E: – Congratulo-me por terem comprado o meu livro e porque não conheciam a bíblia e agora ficam a conhece-la... os teólogos têm-me acusado de fazer uma leitura literal da bíblia – Não sou teólogo, deus me livre! Disseram que fiz uma leitura ingénua – que bom ser ingénuo!
Temos que colocar ao lado de cada leitor da bíblia um teólogo para que ele diga – isto não é assim!
No Memorial do Convento [de Mafra, livro deslumbrante de José Saramago] digo – deus é medonho! – Efectivamente é medonho, que o digam os calcinados de Sodoma e Gomorra e mais duas cidades, nem as crianças, velhos e (porventura) mulheres grávidas escaparam. (...) Qualquer um de nós que não somos deus, nem para lá caminhamos...
O livro é pequeno, 181 páginas, eu bem disse ao Zeferino que fosse até às 200 páginas, mas não foi possível... (...)
Quando me pergunta, – você é ateu, porque se preocupa com temas religiosos?
– Tenho três ou quatro bíblias e uma foi-me oferecida que fala um português que se entende. Tenho uma até do séc. XVII. (...)
Caim é um velho conhecido meu, de há 40-50 anos. Não li a bíblia toda, li o que me interessava nela (...) os salmos são duma beleza extraordinária (disse-o de forma sentida). Impressionava-me muito aqueles dois irmãos dos primeiros pais – Adão e Eva (...) Falou dum senhor de triste memória, fazendo longa pausa... [Sousa Lara, ligado à secretaria da cultura, que lhe pôs o Evangelho Segundo Jesus Cristo, livro religioso e da re-ligação no índex, dando origem a que José Saramago saísse de Portugal para Lazarote... a atitude do sr. Lara foi inquisitória mas, sobretudo, - Inqualificável!]
Caim era agricultor e Abel era pastor, do ponto de vista da economia estava bem montado. Abel queimou [sacrificou] a gordura dum anho e Caim umas plantas, deus aceitou o sacrifício de Abel e rejeitou o de Caim.
Caim era mais velho. Quando deus o humilhou, rejeitando o sacrifício, nasceu o ciúme e Caim pensou: O que é que fiz para merecer tal humilhação? – Daqui ao assassínio vai um passo, está escrito na bíblia e ela sabe o que diz... Caim matou Abel, deus aparece e faz a pergunta. Que fizeste ao teu irmão? – Sou eu o guardião (no livro escrevi guarda-costas) do meu irmão?
E deus castigou Caim: Condeno- te a uma vida errante. Do ponto de vista de Saramago – quem Caim queria ter matado foi deus!!
Na errância de Caim, este encontrou Lilite e dou uma expressão erótica quase pornográfica, transformando-a numa mulher muitíssimo sensual. Considero que o Amor é uma coisa, outra coisa é truca-truca; truca-truca sem Amor dá mau resultado. Truca-truca com Amor é o Elevado!
Escrevi o livro em 4 meses com uma semana passada no hospital, com uma espécie de exaltação não mística, mas com uma espécie de febre. O livro é denso na construção e na linguagem. Com a minha doença – um terramoto – com o processo e com o que decorreu, os médicos não souberam diagnosticá-la, uma supressão das funções orgânicas e a Pilar [esposa de J. Saramago] pensou que ia morrer e, afinal, ainda escrevi dois livros [excluindo Caim]. Considero o Caim dos melhores livros que escrevi, ele andava já comigo (...) Assoprou, impou, fez uma pausa... e disse: Não quero falar de polémicas, mas foi um fartar vilanagem, artigos suficientes para me dar uma grande alegria... cito textos de Inês Pedrosa, V. Graça Moura e Carlos Reis a sair no próximo J.L. Estou acima da desqualificação de todos os tons e um senhor que falava da minha escassa escolaridade... Em Espanha disse a alunos, não fui à Universidade e tenho pena, ao contrário de alguns que foram e não se nota (!). Fui Prémio Nobel, mas como não passei pela Universidade não fui ninguém. Contudo sou a pessoa viva e sou alguém. Os leitores não se deixaram intimidar. 70.000 exemplares vendidos, 30.000 vêm aí e outra edição de 10.000 está na calha, mas não é para me gabar ou talvez sim. Pus-lhes nas mãos [dos leitores] um livro sério que resistirá a todas as canalhadas que se façam à volta dele e da minha pessoa.
Numa tertúlia de escritores e poetas, não me chamavam Saramago, mas “Saragago”. Vejam D. Pedro que também era gago e conseguiu conquistar D. Inês. Talvez por isso escrevo e para compensar escrevo bem e com vantagem. Você não se arrependeu de escrever o livro? – perguntaram-me.
– Arrependo-me por coisas até à medula óssea, mas pelo livro NÃO!
Este Caim não me condena ao silêncio.
No frente-a-frente na SIC Notícias, com o padre Correia das Neves, este disse que Saramago por ser ateu não podia ter direito a heresia. Uma vez que estou fora da igreja não tenho direito à heresia, só que lhe recordei que sou baptizado... Em Espanha estão a pedir a anulação do baptismo, não é o caso para tanto. (...) Então o que eu faço é “blasfemar”, bíblia significa livro, devem ter achado pouco e então chamam-lhe bíblia sagrada. Sagrada é uma palavra intimidatória, que paralisa, que é sagrada, que está carregada duma densidade expressiva intimidatória (...)
A Eternidade não faz esquecer a Eternidade de anterior e então deus não fez nada e de repente decidiu criar um Universo, não se sabe porquê e no 7.º dia descansou e não fez nada até hoje... (...) pode ser que esteja a tratar isto com leviandade, mas serão sérios estes temas? Por muito que a igreja, os teólogos venham tentar explicar a coisa... ela não vai ficar explicada porque ele [deus] nunca se sentou à mesa a tomar café – com eles – é arriscado dizer café, mas podia ser chá. – Livra-te tu de beliscar as rubicundas faces da santa madre igreja – e ainda o livro estava a entrar nas livrarias... não me queixo.
Para os 86 anos de idade que tenho, a memória está bastante boa e estou a escrever outro livro. Vou deixar aqui uma pontinha, não vou dizer nada, nem o título mas...nunca houve uma greve numa fábrica de armas não! Se tivesse havido os operários entrariam na história.
Na guerra civil de Espanha, houve um morteiro que não rebentou e viu-se que no seu interior tinha uma mensagem – Esta bomba não rebentará!, escrita em português da Fábrica de Braço de Prata (Lisboa) – é o impulso motor do novo livro de José Saramago. E disse ainda: – Faz-se o que se pode contra a droga, contra a gripe Ah! [foi com exclamação], e contra as armas? – Nada!, deus não é de fiar!
Os exércitos também não! Gostaria de ter posto o título – O Livro do Desassossego – mas já está, não é o título do Desassossego de Fernando Pessoa, mas convinha-me porque quero desassossegá-los!
Declama um pequeno excerto dum soneto de Luís Vaz de Camões, que com F. Pessoa foram feitos com “os” mesmos embriões: “...estava linda Inês,/posta em sossego” Pudera, cortaram-lhe o pescoço! Meus Caros! Obrigado por terem vindo!
Assim terminou José Saramago a sua intervenção.
O Auditório levantou-se, e irrompeu numa estrondosa salva de palmas! José Saramago cruzou a mão esquerda por cima da mão direita e de seguida levou-as ao coração, agradecendo.
Revejo-me em muitas observações do autor.
Pela inquietação, pela pertinência, pelas questões e por ser indisciplinador de almas, Muito obrigado José de Sousa Saramago!
Apostila: Quando a Inquisição levava em fila os condenados da intolerância (a igreja sempre se auto-intitulou de tolerante...), os descamisados, a populaça, amontoavam- se sôfregos e ansiosos para assistir ao circo da fogueira - à queima. Finalmente a Inquisição acabou.
Vítor Santos
O lançamento do livro Caim, de José de Sousa Saramago, realizou-se a 30 de Outubro do p.p. no Grande Auditório da Culturgest – Lisboa. No acto de lançamento que contou com a presença do Editor da Caminho José Zeferino.
Eis Saramago na sua própria voz:
– Não procurem hematomas, tenho a pele bastante dura, tenho uma carapaça como a tartaruga. A polémica foi promovida pela igreja católica ou [e] jornalistas de mão, movidos por interesses pessoais.
(...) Não pedia tanto, não pedia nada. O que me interessava é que os meus leitores tenham comprado já 70.000(!). Porquê Caim e não tratar de assuntos actuais?
(...)Ratzinger [papa Bento XVI] quer restituir o império romano – disse alguém, e o Autor confirmou, através de sinais que estão a acontecer. (...) E: – Congratulo-me por terem comprado o meu livro e porque não conheciam a bíblia e agora ficam a conhece-la... os teólogos têm-me acusado de fazer uma leitura literal da bíblia – Não sou teólogo, deus me livre! Disseram que fiz uma leitura ingénua – que bom ser ingénuo!
Temos que colocar ao lado de cada leitor da bíblia um teólogo para que ele diga – isto não é assim!
No Memorial do Convento [de Mafra, livro deslumbrante de José Saramago] digo – deus é medonho! – Efectivamente é medonho, que o digam os calcinados de Sodoma e Gomorra e mais duas cidades, nem as crianças, velhos e (porventura) mulheres grávidas escaparam. (...) Qualquer um de nós que não somos deus, nem para lá caminhamos...
O livro é pequeno, 181 páginas, eu bem disse ao Zeferino que fosse até às 200 páginas, mas não foi possível... (...)
Quando me pergunta, – você é ateu, porque se preocupa com temas religiosos?
– Tenho três ou quatro bíblias e uma foi-me oferecida que fala um português que se entende. Tenho uma até do séc. XVII. (...)
Caim é um velho conhecido meu, de há 40-50 anos. Não li a bíblia toda, li o que me interessava nela (...) os salmos são duma beleza extraordinária (disse-o de forma sentida). Impressionava-me muito aqueles dois irmãos dos primeiros pais – Adão e Eva (...) Falou dum senhor de triste memória, fazendo longa pausa... [Sousa Lara, ligado à secretaria da cultura, que lhe pôs o Evangelho Segundo Jesus Cristo, livro religioso e da re-ligação no índex, dando origem a que José Saramago saísse de Portugal para Lazarote... a atitude do sr. Lara foi inquisitória mas, sobretudo, - Inqualificável!]
Caim era agricultor e Abel era pastor, do ponto de vista da economia estava bem montado. Abel queimou [sacrificou] a gordura dum anho e Caim umas plantas, deus aceitou o sacrifício de Abel e rejeitou o de Caim.
Caim era mais velho. Quando deus o humilhou, rejeitando o sacrifício, nasceu o ciúme e Caim pensou: O que é que fiz para merecer tal humilhação? – Daqui ao assassínio vai um passo, está escrito na bíblia e ela sabe o que diz... Caim matou Abel, deus aparece e faz a pergunta. Que fizeste ao teu irmão? – Sou eu o guardião (no livro escrevi guarda-costas) do meu irmão?
E deus castigou Caim: Condeno- te a uma vida errante. Do ponto de vista de Saramago – quem Caim queria ter matado foi deus!!
Na errância de Caim, este encontrou Lilite e dou uma expressão erótica quase pornográfica, transformando-a numa mulher muitíssimo sensual. Considero que o Amor é uma coisa, outra coisa é truca-truca; truca-truca sem Amor dá mau resultado. Truca-truca com Amor é o Elevado!
Escrevi o livro em 4 meses com uma semana passada no hospital, com uma espécie de exaltação não mística, mas com uma espécie de febre. O livro é denso na construção e na linguagem. Com a minha doença – um terramoto – com o processo e com o que decorreu, os médicos não souberam diagnosticá-la, uma supressão das funções orgânicas e a Pilar [esposa de J. Saramago] pensou que ia morrer e, afinal, ainda escrevi dois livros [excluindo Caim]. Considero o Caim dos melhores livros que escrevi, ele andava já comigo (...) Assoprou, impou, fez uma pausa... e disse: Não quero falar de polémicas, mas foi um fartar vilanagem, artigos suficientes para me dar uma grande alegria... cito textos de Inês Pedrosa, V. Graça Moura e Carlos Reis a sair no próximo J.L. Estou acima da desqualificação de todos os tons e um senhor que falava da minha escassa escolaridade... Em Espanha disse a alunos, não fui à Universidade e tenho pena, ao contrário de alguns que foram e não se nota (!). Fui Prémio Nobel, mas como não passei pela Universidade não fui ninguém. Contudo sou a pessoa viva e sou alguém. Os leitores não se deixaram intimidar. 70.000 exemplares vendidos, 30.000 vêm aí e outra edição de 10.000 está na calha, mas não é para me gabar ou talvez sim. Pus-lhes nas mãos [dos leitores] um livro sério que resistirá a todas as canalhadas que se façam à volta dele e da minha pessoa.
Numa tertúlia de escritores e poetas, não me chamavam Saramago, mas “Saragago”. Vejam D. Pedro que também era gago e conseguiu conquistar D. Inês. Talvez por isso escrevo e para compensar escrevo bem e com vantagem. Você não se arrependeu de escrever o livro? – perguntaram-me.
– Arrependo-me por coisas até à medula óssea, mas pelo livro NÃO!
Este Caim não me condena ao silêncio.
No frente-a-frente na SIC Notícias, com o padre Correia das Neves, este disse que Saramago por ser ateu não podia ter direito a heresia. Uma vez que estou fora da igreja não tenho direito à heresia, só que lhe recordei que sou baptizado... Em Espanha estão a pedir a anulação do baptismo, não é o caso para tanto. (...) Então o que eu faço é “blasfemar”, bíblia significa livro, devem ter achado pouco e então chamam-lhe bíblia sagrada. Sagrada é uma palavra intimidatória, que paralisa, que é sagrada, que está carregada duma densidade expressiva intimidatória (...)
A Eternidade não faz esquecer a Eternidade de anterior e então deus não fez nada e de repente decidiu criar um Universo, não se sabe porquê e no 7.º dia descansou e não fez nada até hoje... (...) pode ser que esteja a tratar isto com leviandade, mas serão sérios estes temas? Por muito que a igreja, os teólogos venham tentar explicar a coisa... ela não vai ficar explicada porque ele [deus] nunca se sentou à mesa a tomar café – com eles – é arriscado dizer café, mas podia ser chá. – Livra-te tu de beliscar as rubicundas faces da santa madre igreja – e ainda o livro estava a entrar nas livrarias... não me queixo.
Para os 86 anos de idade que tenho, a memória está bastante boa e estou a escrever outro livro. Vou deixar aqui uma pontinha, não vou dizer nada, nem o título mas...nunca houve uma greve numa fábrica de armas não! Se tivesse havido os operários entrariam na história.
Na guerra civil de Espanha, houve um morteiro que não rebentou e viu-se que no seu interior tinha uma mensagem – Esta bomba não rebentará!, escrita em português da Fábrica de Braço de Prata (Lisboa) – é o impulso motor do novo livro de José Saramago. E disse ainda: – Faz-se o que se pode contra a droga, contra a gripe Ah! [foi com exclamação], e contra as armas? – Nada!, deus não é de fiar!
Os exércitos também não! Gostaria de ter posto o título – O Livro do Desassossego – mas já está, não é o título do Desassossego de Fernando Pessoa, mas convinha-me porque quero desassossegá-los!
Declama um pequeno excerto dum soneto de Luís Vaz de Camões, que com F. Pessoa foram feitos com “os” mesmos embriões: “...estava linda Inês,/posta em sossego” Pudera, cortaram-lhe o pescoço! Meus Caros! Obrigado por terem vindo!
Assim terminou José Saramago a sua intervenção.
O Auditório levantou-se, e irrompeu numa estrondosa salva de palmas! José Saramago cruzou a mão esquerda por cima da mão direita e de seguida levou-as ao coração, agradecendo.
Revejo-me em muitas observações do autor.
Pela inquietação, pela pertinência, pelas questões e por ser indisciplinador de almas, Muito obrigado José de Sousa Saramago!
Apostila: Quando a Inquisição levava em fila os condenados da intolerância (a igreja sempre se auto-intitulou de tolerante...), os descamisados, a populaça, amontoavam- se sôfregos e ansiosos para assistir ao circo da fogueira - à queima. Finalmente a Inquisição acabou.
Vítor Santos
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