Sintra/País



Em memória dos que perderam a vida na estrada…

O Dia Mundial em Memória das Vítimas da Estrada teve em Sintra, o concelho do distrito de Lisboa com mais mortes na estrada*, a principal celebração nacional. A OMS estima que percam a vida em vias rodoviárias um milhão e duzentas mil pessoas por ano. Em Portugal, na última década, morreram 13 mil pessoas em acidentes de viação.

No entanto, os números das estatísticas, por maiores que sejam, não contemplam a quantidade de famílias abaladas, o sofrimento de colegas e amigos, a resignação ao que fica apenas na memória e nos álbuns de fotografia de família, ao lugar vazio à mesa e muito menos mesa e muito menos a dor que significa a ausência de um ente querido. Não são apenas as lágrimas e as homenagens, é a expressão de luto que demonstraram as pessoas que compareceram à celebração do Dia Mundial em Memória das Vítimas da Estrada, no dia 15 do corrente, que aponta para um dos maiores flagelos do mundo moderno: as consequências dos acidentes que todos os dias, a todas as horas, povoam as notícias com desastres, acidentes, despistes e colisões nas estradas do país e de todo o mundo.

O tempo, cinzento, pareceu acompanhar o estado de espírito dos que compareceram e a chuva marcou presença num evento que reuniu pessoas de Sintra e de outras localidades para recordar, publicamente, neste dia, – apesar da memória de quem perderam permanecer para sempre – aqueles que não conseguiram resistir com vida a acidentes de viação e também alertar para as sequelas que esses acidentes provocam a quem deles consegue escapar.

A tarde começou com uma marcha lenta, dos Paços do Concelho, passando pela Volta do Duche, até ao Palácio de Valenças, onde actuou a Banda da Sociedade Filarmónica de N.ª Sra. da Fé de Monte Abraão e onde representantes de várias associações agregadas à liga organizadora do evento, a Estrada Viva, falaram sobre a problemática em questão.





O número de vítimas não diminui

Na última década, 13 mil pessoas morreram nas estradas portuguesas mas, apesar de o número de mortos e feridos graves deste ano ser menor do que o número do ano passado*, o número de vítimas não diminui, como ressaltou José Manuel Ramos, presidente da ACA-M (Associação de Cidadãos Auto-Mobilizados): “Os números da mortalidade não descem, só acumulam. É verdade que de um ano para o outro podem haver menos mortos, mas e os outros? E os que [morreram] há dois anos e os que morreram há 5 anos e há 10 anos? Não devem ser também lembrados? Não devem ser também parte do nosso património, um património doloroso?”.

O Dia Mundial em Memória das Vítimas da Estrada é uma comemoração adoptada pela ONU e pela OMS (Organização Mundial de Saúde) e implementada pelo FEVR (European Federation of Road Victims) que se iniciou em 1993. Em Portugal esta é a sétima vez que se celebra este dia, sendo que em várias localidades há actividades no sentido de recordar as vítimas da estrada, como aconteceu no passado dia 15 em Évora e Vila Real.

A principal razão é o facto de “fora da Europa os números estarem a aumentar extraordinariamente”, como apontou o presidente da ACA-M. Além disso, os desastres rodoviários são a nona causa de morte no mundo e “a preocupação da Organização Mundial de Saúde é que as mortes nas estradas possam chegar a ser a terceira causa de morte em todo o mundo”.

De acordo com comunicado da OMS: “Estima-se que, anualmente e em todo o mundo, cerca de 1,2 milhões de pessoas morrem e 50 milhões são feridas em consequência de acidentes de viação. As projecções indicam que estes números vão aumentar em cerca de 65% nos próximos 20 anos (…). Ainda assim, a tragédia por trás destes números atrai menos a atenção dos media do que qualquer outro tipo de tragédia menos frequente”.






A dor que as estatísticas não revelam

Filomena Araújo, da GARE (Associação para a Promoção de uma Cultura de Segurança) aponta para as questões sociais que os acidentes rodoviários despoletam, sublinhando que este é “um problema de saúde pública, quer a segurança rodoviária, quer o apoio às vítimas”. De facto, “o tormento que se passa, os gastos, e a não produtividade muitas vezes das famílias e as consequências dos acidentes”, conta Filomena Araújo, – mãe de um jovem que não sobreviveu a uma colisão na estrada, onde faleceram seis outros jovens – são um problema que equipara ao flagelo de uma doença que tem provocado milhares de mortos em todo o mundo: “só comparo os problemas que se passam com as situações dos acidentes com aquilo que se passa com a sida”, ressalta. A pensar no sofrimento dos que ficam, foi criada hácerca de 14 anos em Sintra, a associação pertencente à Estrada Viva, A Nossa Âncora, que presta apoio a quem perdeu entes queridos na estrada. Como explica Emília Agostinho, moderadora das celebrações e membro da associação: “A Estrada Viva é um conjunto em que queremos que a estrada seja viva e não de mortos” e A Nossa Âncora é “uma IPSS considerada de utilidade pública que dá apoio a pais e familiares mais próximos, como irmãos e avós, em luto”.

A iniciativa de dia 15 é “em memória das vítimas da estrada, sejam mortais ou não”, servindo para “chamar a atenção para as pessoas tomarem um pouco de consciência, porque temos sempre a ideia de que só acontece aos outros”. E em jeito de exemplo Emília Agostinho partilha a sua própria dor, contando o seu drama: “num segundo perdi marido e filho num acidente de automóvel em plena Lisboa”. A moderadora aconselha precaução, moderação e civismo a todos os automobilistas, uma vez que “se todos tomarem consciência e se todos estiverem sensibilizados podem-se evitar muitas mortes”.

Lucinda Maçorano, da Quinta do Conde, exibia na sua t-shirt uma imagem do filho, que todos conheciam por “Nando”, que perdeu a vida aos 26 anos devido a um desastre de mota. “É muito, muito doloroso, muito complicado perdermos assim um filho de um momento para o outro. Acaba de jantar connosco e passadas umas horas tocam-me à porta [a dizer] ‘O seu filho está morto na estrada’, conta visivelmente emocionada. Lucinda confessa: “eu agarrei-me muito à A Nossa Âncora e estou-me a agarrar. Ando em psicólogos, psiquiatras, porque é muito muito difícil”, uma vez que Nando era filho único e “transbordava alegria, boa-disposição”. “A nossa vida já não faz sentido, sem ele já não faz sentido”, rematou.

Em jeito de homenagem, foi colocado um mural temporário à entrada do Palácio de Valenças, onde familiares e amigos de vítimas de acidentes de viação colocaram fotografias, dizeres ou simplesmente os nomes num gesto simbólico de lembrança e tristeza. O mural será depois colocado em local visível pela organização do evento, no sentido de alertar para o flagelo da sinistralidade na vida daqueles que ficaram cá para recordar os que partiram. Como explica Filomena Araújo, “a sociedade deve-se organizar para responder a curto, a médio e alongo prazo no suporte às vítimas directas e indirectas e também no perpetuar uma memória, um respeito e uma celebração por aqueles que tinham muito para dar, mas que infelizmente não estão cá”.

Este dia é também uma evocação à segurança rodoviária, que deve ser promovida por todos os que utilizam as estradas. Se “Viver em segurança é gerir um risco e nós estamos a geri-lo todos os dias quando nos levantamos e saímos de casa”, como explica Filomena Araújo, esse risco deveria ser gerido com redobrada precaução nas vias rodoviárias, não apenas para reduzir as estatísticas, mas também para reduzir as consequências dolorosas que advêm dos acidentes, quer causem ou não a morte.







*Um sinistro recorde…
Os números indicam que Sintra foi o município de Lisboa onde se registaram mais mortes nas estradas, no ano passado. De acordo com dados da Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária (ANSR), houve no concelho 17 vítimas mortais – 18,3% do total – fruto de despistes (10 das vítimas), colisões (5 das vítimas) ou mesmo atropelamento de peões (2 das vítimas). Sintra foi também um dos municípios com um recorde de feridos graves – 44 vítimas, que representam 11% de um total de 401 em todo o distrito. Neste caso, foi em Lisboa que se registaram mais feridos graves, com 132 vítimas, 32,9% do total.

Analisando o ano anterior, 2007, houve em Sintra um aumento de acidentes com vítimas em 2008 (mais 58 acidentes). No entanto, o número de vítimas mortais diminuiu (menos 5 acidentes) assim como o de feridos graves (menos 6).

Os dados indicam que em todo o distrito revelam também um decréscimo, já que houve em 2008 menos 221 acidentes, menos 12 mortos e menos 83 feridos graves. Os dados de este ano (de 1 de Janeiro a 7 de Novembro) revelam a mesma tendência: menos 18 mortos e menos 51 feridos graves face ao período homólogo em 2008.

A nível nacional, nota-se também um decréscimo no número de vítimas mortais, registando-se menos 13 do que no período homólogo de 2008; os feridos graves contabilizam- se em menos 15 no mesmo período.

Nota da Redacção: Na próxima edição do Jornal de Sintra, a sair no dia 27 do corrente desenvolveremos mais este assunto, com dados estatísticos detalhados sobre o concelho e zonas limítrofes.



Sinistralidade nas estradas é debatida globalmente

A evocação das vítimas da estrada, iniciada em 1993, reconhecida pela Resolução das Nações Unidas 60/5 e adoptada pela Assembleia Geral a 26 de Outubro de 2005, é feita no terceiro domingo do mês de Novembro desde 1993, por iniciativa de várias organizações não governamentais. É neste dia, que este ano calhou no dia 15, que se recordam publicamente aqueles que morreram ou ficaram feridos em acidentes rodoviários.

O Governo português lembrou este dia com uma acção de sensibilização para os automobilistas, em que participou o ministro da Administração Interna (MAI), Rui Pereira, entre outras individualidades. Organizada pelo Governo Civil de Lisboa, que tem desenvolvido campanhas de publicidade institucional como “Ao volante, basta uma vez para ser de vez” e “Verdade ou Consequência – Não jogue com a sua vida”, a iniciativa decorreu separadamente às comemorações organizadas pela Estrada Viva. A associação não deixa de criticar, em comunicado, a decisão: “Esta postura de não cooperação do MAI em relação às organizações da Estrada Viva – Liga Contra o Trauma não valoriza a dignidade do Dia da Memória em Portugal, menoriza o empenho das organizações cívicas, e desrespeita as recomendações da Organização Mundial de Saúde para estabelecimento de uma parceria entre as entidades oficiais e as organizações cívicas empenhadas na celebração deste Dia”.

Por outro lado, o presidente e o vice-presidente da Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária (ANSR), Paulo Marques e Luís Farinha, respectivamente, participam na primeira Conferência Mundial Inter-Ministerial Sobre Segurança Rodoviária, em Moscovo*, que reunirá pela primeira vez cerca de 1500 delegados, que durante dois dias discutirão os problemas da segurança rodoviária a nível global. A conferência está a ser organizada com o apoio das Nações Unidas, da Organização Mundial de Saúde, do Banco Mundial e da Federação Internacional do Automóvel.

A Associação de Cidadãos Auto-Mobilizados, membro da Estrada Viva, é uma das 74 subscritoras da Declaração das ONG’s dedicadas à Segurança Rodoviária e Apoio às Vítimas, que será apresentada durante os trabalhos da Conferência Mundial.

*de acordo com informações da ANSR aquando do fecho desta edição


Texto e fotos: Vanessa Sena Sousa

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