Cultura

Jorge de Sena: O regresso do filho prodigioso

A trasladação, em Setembro passado, dos restos mortais de Jorge de Sena, nome maior da nossa cultura, para o Cemitério dos Prazeres constituiu um motivo de júbilo para todos quantos, como é o caso do autor deste texto, vêem na sua vida e obra um momento cimeiro de toda a história da cultura portuguesa.

Nascido em Lisboa em 2 de Novembro de 1919 e falecido a 4 de Junho de 1978 em Santa Bárbara, na Califórnia, Jorge de Sena, que se licenciou em Engenharia Civil na Universidade do Porto e esteve prestes a seguir carreira como oficial da Marinha de Guerra, acabou por escolher o caminho com o qual vocacionalmente sempre se identificou e que foi o da criação literária, do ensaísmo e do ensino universitário. Auto-exilado de Portugal em 1959, depois de ter trabalhado na Junta Autónoma de Estradas, Sena doutorou-se em Letras em São Paulo, Brasil, ali tendo adquirido sólido prestígio como professor universitário e escritor. Em 1965, o seu destino seriam os Estados Unidos, primeiro na Universidade de Wisconsin e depois Santa Bárbara, na Califórnia, onde morreu 13 anos mais tarde. É impressionante, pela inexcedível qualidade e pela assombrosa diversidade, a obra literária que construiu em 59 anos de vida, destacando-se como uma das maiores vozes poéticas de toda a nossa história literária, como ficcionista, ensaísta, dramaturgo e tradutor de ficção e poesia. A sua imensa capacidade de trabalho, a sua cultura enciclopédica, a sua relação turbulenta e tantas vezes truculenta com a pátria distante fizeram dele uma figura única e de referência permanente e absoluta na nossa vida cultural, ideia que sai reforçada da leitura da vasta correspondência mantida com nomes maiores da nossa vida literária como Sophia de Mello Breyner ou Eduardo Lourenço. Excessivo, apaixonado, implacável nos seus juízos críticos, Jorge de Sena nunca se deixou “estrangeirar”, continuando sempre a olhar Portugal como se estivesse atolado até aos ossos na conturbada e quase sempre desnorteante realidade nacional. Sena, o autor de obras-primas como “Sinais de Fogo”, “O Físico Prodigioso” ou “Peregrinatio ad Loca Infecta”, nunca aceitou que a pátria lhe fosse madrasta e, por isso, nunca deixou que se arredasse do seu espírito a ideia de um regresso com o destaque e o reconhecimento de que sempre foi legítimo credor. Mas esse dia nunca chegou como ele terá sonhado, mesmo que não quisesse reconhecê-lo.

O 25 de Abril de 1974 ainda chegou a entusiasmá-lo, mas depressa se desencantou e afastou da euforia primordial. Foi o Presidente Ramalho Eanes que reconheceu, ao nível do Estado, a grandeza única da sua obra com uma das maiores condecorações portuguesas. Mas Jorge de Sena continuava auto-exilado, com a mulher, Mécia de Sena, e os seus nove filhos, na Califórnia, onde acabou por morrer, após esporádicas vindas a Portugal. Depois da sua morte, Mécia de Sena, companheira e incansável colaboradora de uma vida, nunca mais deixou de se bater pela divulgação da sua obra em Portugal e no estrangeiro e pela defesa dos seus direitos como criador. Quando morreu, Jorge de Sena era cooperador da Sociedade Portuguesa de Autores, que agora decidiu atribuir-lhe a sua Medalha de Honra, a título póstumo, estando a outorga dessa distinção aprazada para o dia da trasladação dos seus restos mortais.

Com este regresso, coloca-se um ponto final no segundo exílio – o da vida e o da morte – de uma das maiores figuras intelectuais portuguesas do século XX. Jorge de Sena morreu zangado com Portugal, tornando de algum modo seu o destino trágico de Luís de Camões, poeta que estudou de forma brilhante e que transformou em interlocutor cúmplice de alguns dos seus mais tocantes textos poéticos. A sua amargura e revolta, durante e depois da ditadura, podem ser partilhadas por muitos criadores de primeira água que a pátria continua a ignorar ou a tratar com sobranceria e revoltante desinteresse. Até por isso, este regresso tem um redobrado valor simbólico. Talvez em vida Jorge de Sena nunca se tivesse reconciliado com a pátria distante, mas, com este regresso, sentimos que alguma coisa se apaziguou nesta relação intensa e amarga. Portugal abriu os braços, com saudade e afecto, para receber um dos seus filhos de maior fulgor e génio, que não hesito em dizer que merecia ter lugar no Panteão Nacional.


José Jorge Letria

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