Artigo de Opinião

Sérgio Luís de Carvalho O heroísmo e o absurdo

Autor sobejamente conhecido no campo do romance histórico devido à qualidade dos seus livros, vencedor do Prémio de Literatura Ferreira de Castro e finalista do Prémio Jean Monnet de Literatura Europeia e do Prémio Amphi de Literatura Europeia, Sérgio Luís de Carvalho (SLC), desde Peregrinos sem Fé (2007, passado entre Portugal e a Galiza), com lançamento simultâneo em Lisboa e Santiago de Compostela, tem privilegiado o estrangeiro como cenário estético dos seus romances, como o comprovou a publicação d’O Retábulo de Genebra, um dos melhores romances históricos publicado em Portugal em 2008, decorrido no vasto território transfronteiriço entre a Suíça e a França. O romance ora publicado, O Destino do Capitão Blanc, passa-se igualmente no estrangeiro, o território do nordeste de França, palco das grandes batalhas finais da I Guerra Mundial, tendo como pano de fundo a situação política republicana e sidonista em Lisboa, em 1918, e a paisagem rural e romântica de Sintra e Colares.

De qualidade literária semelhante a O Retábulo de Genebra, O Destino do Capitão Blanc estatui-se, indubitavelmente, como o melhor romance português sobre a participação portuguesa na I Guerra Mundial. Dotado de um autêntico rigor histórico, SLC evidencia que domina em absoluto os factos históricos da época narrada, os conflitos políticos e institucionais, a sua expressão militar, os hinos, as canções guerreiras, os uniformes militares, a mitologia heróica dos principais povos participantes (alemães, ingleses, franceses, belgas, italianos, americanos); conhece com suficiente pormenor as roupas, a higiene pessoal, a alimentação, os períodos de actividade e inactividade dos militares, a hierarquia castrense, as armas de combate, as formas brutas de divertimento dos soldados, a toponímia e os códigos das cartas militares…, o que significa uma não pouco demorada e pouco intensa investigação sobre este período histórico e este tema. Romance assente, quanto à forma, numa estrutura cronológica simples (este será, porventura, o romance de SLC mais linear quanto à forma), ela é compensada pela contínua utilização da analepse, projectando o passado no presente, prestando, assim, coesão vivencial ao conteúdo da história - a vida singular do capitão Luís Guilherme Blanc, republicano e sidonista.

Novidade no estilo de SLC é, parece-nos, a utilização de pequenos parágrafos entre parêntesis como uma espécie de pulsão inconsciente do texto, alusivo ao diálogo, ao monólogo ou à descrição imediatamente anterior, uma espécie de subtexto amplificador do texto, não raro de natureza céptica. Outra novidade reside na alteração qualitativa do humor e da ironia presente neste romance face aos anteriores de SLC. Autor céptico quanto às virtudes da razão humana, este romance é atravessado por uma permanente carga de humor, forçando, pela ironia, pelo sarcasmo, até pelo escárnio, o sorriso do leitor, quando não o riso. O humor é, de facto, um traço marcante do estilo de O Destino do Capitão Blanc, contribuindo para suavizar uma história tragicamente carregada de dor e sofrimento individuais e de morticínios colectivos.

Do ponto de vista do conteúdo, o romance tende a desenvolver-se em dois momentos referenciais: 1. – a constatação, pela repetida mostragem de situações existenciais, do absurdo da guerra; 2. – a fortíssima denúncia da incompetência e negligência das chefias militares portuguesas, cujas consequências foram apenas sofridas pelos militares menos graduados em posto de combate. Deste modo, todo o romance se desenvolve em torno do eixo semântico da absurdidade da guerra, tendo a participação portuguesa na I Guerra Mundial atingido o cúmulo do absurdo. Primeiro, porque não havia recursos e meios militares, não tinham sido acautelados géneros alimentícios, fardas, soldos, forçando os soldados portugueses a usarem os recursos britânicos e, quando de licença, para sobreviverem, a implorarem esmola de mão estendida pelas aldeias de França; segundo, não tinha havido treino específico para situações de guerra; como consequência, e em terceiro lugar, os soldados são taxativamente abandonados nas trincheiras, usados pelos oficiais como carne para canhão para a conquista ou perda de mais um ou menos um quilómetro de território, indiferentes à morte de centenas de milhar de homens; quarto, porque a guerra não interessava a Portugal como um todo, mas a interesses negociais políticos; por isso, Sidónio Pais, criticando a entrada de Portugal na guerra, prolonga a quando sobe ao poder; finalmente, depreende-se do romance de SLC, que todo o heroísmo é expressão limite de um desespero e toda a cobardia a assunção lúcida e corajosa desse mesmo desespero; o heroísmo é, assim, perspectivado como o sentimento próprio do excesso e do arrebatamento (por isso, tão colado ao desespero), aliados no romance ao cepticismo e ao pessimismo do narrador sobre a natureza humana.

No romance, que harmoniza com perfeição a vida individual do capitão Blanc e o ambiente social português das duas primeiras décadas do século XX, o autor descreve com mestria a zona penumbrosa da personalidade humana que desemboca e alimenta a guerra, todas as guerras, essa pulsão vital demarcadora de uma linha muito ténue que separa o heroísmo da loucura e a razão da demência.

Em conclusão, toda a guerra se assume como o lugar caótico e catastrófico onde, paradoxalmente, o absurdo se torna lei lógica e regra normal. “A guerra é a guerra”, dizem o protagonista e o seu pai, também militar, isto é, o non sense do absurdo evidencia-se através de uma linha contínua, coerente e lógica pela qual indiscriminadamente se mata e morre em nome de ideais que, passada uma vintena de anos, a nova geração considera absolutamente absurdos.

O Destino do Capitão Blanc, Planeta, 294 pp., 17,75 euros.


Luís Miguel

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