Obituário


M. S. Lourenço

Da palavra à música

Falecido em Agosto – mês de todas as ausências –, não foi feita nos jornais a homenagem pública que M. S. Lourenço merecia, tanto pela dimensão da sua obra filosófica (verdadeiramente, o introdutor da lógica matemática na Faculdade de Letras de Lisboa, após os estudos relativamente amadores de Francisco Vieira de Almeida em Lisboa e Edmundo Curvelo em Coimbra), quanto pela absoluta singularidade da sua obra literária. No que diz respeito a Sintra, não hesitamos em afirmar ter sido M. S. Lourenço, sobretudo no seu último livro de poesia, Nada Brahma, um dos seus mais excelentes cantores na segunda metade do século XX, tema a que voltaremos num segundo artigo sobre este autor dedicado exclusivamente a Sintra.

Participante da revista histórica O Tempo e o Modo, autor integrado na célebre colecção “Círculo de Poesia”, dirigida por Pedro Tamen, na editora Moraes, cúmplice da geração de “Poesia 61” (Gastão Cruz, Maria Teresa Horta, Fiame Hasse Pais Brandão, Alice Neto Jorge, E. M. Mello e Castro…), M. S. Lourenço deve ter sido, porventura, o autor (poesia e narrativas proso-poéticas) mais singular da geração de escritores que emerge publicamente ao longo da década de 1960, criador de um universo filosófico-literário absolutamente individualizado, uma espécie de mónada literária sem mestres nem discípulos. De comum com os escritores da época, apenas a vontade de desconstrução das categorias clássicas da escrita, que os seus estudos sobre Godel, Wittgenstein, Nietzsche e Freud posteriormente fundamentariam, conduzindo-o a um cepticismo recatado e a uma exposição pública resguardada, não raro atribuídos, por ignorância de muitos, a um elitismo social inglês ou aristocratismo. M. S. Lourenço deve a sua peculiaridade no universo literário português à fundamentação filosófica do seu trabalho poético e narrativo, confundido pelos comentadores com um simples vanguardismo experimentalista ou um surrealismo serôdio, que está muito, muito longe de esgotar a dimensão conceptual que animou o seu trabalho literário.

Com O Desequilibrista (1960), M. S. Lourenço evidencia a contestação da identificação da Fé com a Verdade e, filosoficamente falando, da contestação da existência de uma verdade inconsútil. Esta dupla contestação é poeticamente afirmada através da refutação do império da gramática racionalista assente na lógica aristotélica e port-royalina. Porém, face à impossibilidade de escrever (e falar) senão assente nesta gramática, mãe do pensamento ocidental, M. S. Lourenço expõese neste livro como um “acrobata” (“Ode para João Baptista”, p. 24), equilibrando-se entre os acertos e os desacertos do mundo, por si próprio ajudando (pelo poema, pela palavra) a “desequilibrá-lo”, a resgatar a antiga “via simples” (o amor) contra a “sintaxe”, isto é, contra o domínio do mundo fundado na lógica (p. 11). Em O Doge (1962), publicado com o pseudónimo Arquiduque Alexis-Christian von Ratselhaft und Gribskov, é reiterado o anterior universo céptico, o mundo apresentado como um jogo lúdico de consciências individuais, mesmo caprichosas, isto é, irracionais, e os contos (a literatura) evidenciados como espelho amplificado de um inconsciente ilógico reitor do mundo.

Em 1971, M. S. Lourenço publica Arte Combinatória, livro que explora a impossibilidade de relação transparente entre a palavra e a realidade, como o expõe o primeiro poema: um mecanismo (a lógica; a sintaxe; o desejo de ordem e de domínio) liga as palavras entre si, prestando sentido à frase entre o “interior” (a consciência) e o “exterior” (a realidade). Porém, a via legítima (como a “via simples” em O Desequilibrista) reside na da intuição unitiva (“toco o chão pulveriza- se o sentido” lógico, p. 12), substituindo e destruindo a relação aristotélica entre a palavra, o substantivo gramatical, o sujeito lógico e a substância ontológica: linguagem, gramática, lógica e ontologia – os quatro pilares conceptuais da nossa civilização – são assim destruídos pelo poema e pelo poeta, que, em compensação, louva a intuição sensível do real (quando a realidade ainda não possui “sentido”, p. 12), apresentando o pensamento, ao modo nietzschiano, como uma deformação ou um desequilíbrio do real. Arte Combinatória significaria, assim, a possibilidade de combinar palavras contra o sentido lógico e ontológico por que a realidade se dá a conhecer nos quadros categoriais da civilização ocidental, desmontando- os e evidenciando a literatura como arte subversiva das regras fundamentais do nosso mundo costumeiro. Com Pássaro Paradípsico (1979), dividido em três momentos diários (Noite, Manhã, Tarde), ilustrado com três quadros de Mário Cesariny, inicia-se a segunda fase da sua poesia, pela qual o antigo valor dado à palavra como exaltação subversiva do mundo é substituído pelo privilégio dado à música. Um dos mais intrigantes livros de poesia-prosa publicados na segunda metade do século XX em Portugal, em Pássaro Paradípsico M. S. Lourenço anuncia a sua morte “afectiva”. Teria morrido no dia 15 de Janeiro de 1973, em Dorchester, Oxfordshire, Inglaterra. Durante um “banho de água quente”, o seu corpo ter-se-ia transformado no que verdadeiramente era: uma “truta”. “As suas escamas caíram uma a uma e foram finalmente engolidas pelos esgotos do condado. Jaz no estrume de Dorchester com a esperança de se tornar num cacto” (contracapa). Face à anterior frustrada subversão do mundo pela palavra (1ª fase), M. S. Lourenço, como o clássico aforismo denota um condensado de sentido do mundo, parece organizar este livro por meio de antiaforismos, evidenciando o sem sentido do mundo. Cruzando três registos mundanos (o vegetal, o animal e o humano), M. S. Lourenço provoca nestes anti-aforismos uma autêntica explosão de subversão semântica do mundo, tornando este livro absolutamente desconcertante, apontando já para a mensagem ínsita no seu último livro, Nada Brahma (Assírio & Alvim, 1991): a intuição como via privilegiada de acesso ao real, denotada nos seus anteriores livros, metamorfoseia-se agora na apercepção musical como captação verdadeira do sentido do mundo. À desconstrução total do sentido do mundo patente em Pássaro Paradípsico segue-se, assim, em Nada Brahma, a sua reconstrução, operada, não pela visão, mas pela audição, e não de novo pela palavra, mas pela arte combinatória da música. O Ser (Brahma) é reconduzido a Nada (o Som, em sânscrito), isto é, à unidade auditiva da realidade. A poesia é, deste modo, quanto à forma, reconduzida ao seu antigo estatuto primordial e originário de rima e de ritmo, toada embaladora e encantatória, despertadora do deleite divino (a Verdade) da consciência, e, quanto ao conteúdo, de rito, isto é, enunciadora litúrgica do passado e do futuro das sociedade, ou, noutras palavras, originadora da religião, como o autor o evidencia nas crónicas recolhidas em Os Degraus do Parnaso (1992). Neste sentido, não nos admiramos que, nesta última fase, exista uma aproximação de M. S. Lourenço à poesia de Camilo Pessanha. Trata-se, agora, de procurar “uma língua mais arcaica” (Nada Brahma, p. 46), uma espécie de canto universal da Terra, que, porém, apenas interiormente a consciência individual ouve e sabe. Deste modo, a Literatura, tanto esteticamente quanto cognitivamente, reganha o seu antigo estatuto de produtora de sentido do mundo, de buscadora de uma verdade iluminadora para o mundo, de que a música, a grande música, é expressão sintética.

Luís Martins

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